Por que as crianças mentem?
A psicanalista Mônica Pessanha reflete por quais motivos as crianças começam a mentir. "Interessante que muitas vezes nós adultos também não somos honestos e optamos pela via de uma mentirinha branda", destaca. Confira!
Quando assunto é dar um fim moral para a mentira, basta olhar para as histórias infantis até os contos de fada encontramos alguns exemplos disso. Na fábula "O menino e Lobo" - que faz parte do conjunto de fábulas de Esopo – o menino que, mentindo, gritava "lobo, lobo" apenas para ver o pavor de todos, tem que se haver com a consequência: quando o lobo chega, o rebanho é devorado, tudo por culpa do menino.
Outra história é com o mesmo tema da mentira é a de Pinóquio, menino cujo nariz crescia cada vez que mentia. Nessa história, somente quando ele jurou nunca mais mentir foi que pode ser recompensado, tornando-se um menino de verdade e não mais um boneco de madeira.
Essas histórias dizem às crianças que se mentirem as coisas darão errado; se disserem a verdade, serão aceitas de braços abertos.
As crianças internalizaram que mentir é ruim. Dizer a verdade é bom, porque deixa as coisas às claras: é preto ou branco, ou isso ou aquilo. É interessante pensar que tanto as histórias (sejam fábulas ou conto de fadas) e o paradigma parental dominante perpetuam esse sentimento de vergonha por enganar os outros.
Mas e se aprender a mentir fosse um marco no desenvolvimento que significasse que nossos filhos estavam no caminho certo? E se as mentirinhas inocentes fossem uma parte normal da infância? E se contássemos às crianças histórias que mostrassem que é seguro dizer a verdade, não importa o que aconteça?
Bom, não há nada mais honesto ou direto do que uma criança pequena que, sem vergonha, aponta seus defeitos e os dos outros. Isso acontece porque, nos anos iniciais, as crianças carregam a ideia de que o que está na mente delas também está na do adulto. Eles acreditam que todos veem e interpretam as coisas da mesma forma que eles. Portanto, mentir não seria útil para eles.
Frustrações e mentiras
Mas então, à medida que eles ficam um pouco mais velhos, os seguintes cenários começam a acontecer:
“Você já vestiu suas roupas?”
“Sim, mãe!”
Mesmo que ele esteja passeando pelo corredor de pijama!
“Encontrei todas essas embalagens de doces debaixo da sua cama, você comeu todas?”
“Não, mãe, não fui eu!”
Apesar de você estar vendo o canto da boca sujo de doce.
Eles começam a mentir. Esse acontecimento costuma causar um certo desconforto para os pais que, de repente, ficam chocados com o fato de que seu filho, aquele ser tão inocente, agora mente. O que essas primeiras mentiras sinalizam é o fim da personalidade pré-escolar e a passagem para o próximo estágio da infância.
A capacidade de conter e ocultar os próprios pensamentos e sentimentos só surge quando as crianças cultivam um certo nível de autocontrole e a capacidade de sentir empatia pelos pensamentos e sentimentos internos de outra pessoa.
Por volta dos 5-7 anos, as crianças começam a perceber que os pensamentos dentro de suas próprias cabeças são diferentes daqueles ao redor delas. Isso se alinha com um período de desenvolvimento que ocorre quando elas podem começar a manter dois conceitos separados ao mesmo tempo.
O psicólogo do desenvolvimento, Jean Piaget, cunhou a frase “mudança de 5 para 7 anos” para se referir à idade em que uma criança começa a ser capaz de misturar pensamentos e sentimentos conflitantes. Desenvolver a capacidade de misturar sentimentos opostos é o que freia as reações impulsivas. Eles podem ficar animados com a festa de aniversário do irmão e com ciúmes ao mesmo tempo. Eles podem ficar tristes porque a mãe tem que ir trabalhar e animados para ir à escola.
É justamente quando uma criança começa a vivenciar conflitos internos que sua frustração pode ser temperada com cuidado, seu medo com desejo, e ela será capaz de considerar as necessidades de outra pessoa junto com as suas próprias. Você pode testemunhar esse conflito em primeira mão, pois a criança pode até ficar nitidamente desconcertada, mas não explode da mesma forma incivilizada. É a capacidade de vivenciar sentimentos mistos que coloca um impasse nas formas mais impulsivas da criança em idade pré-escolar. Ela será capaz de pensar antes de falar, e até mesmo guardar um segredo, assim como contar uma mentira de verdade.
Ser capaz de ver que outras pessoas pensam e entendem as coisas de forma diferente é uma parte importante do desenvolvimento social; é quando a capacidade de interagir com os outros se torna mais complexa e profunda. É o ponto em que nossos filhos começam a se conectar mais intimamente com seus amigos e pessoas ao redor deles.
Isso também permite que nossos filhos percebam que podem mentir sobre comer um biscoito quando não estávamos olhando, sobre ser quem derramou o suco quando estávamos de costas ou sobre não ter batido na irmã enquanto estávamos no outro cômodo, apesar das lágrimas da irmã dizerem o contrário.
'A escolha mais fácil pode ser mentir'
Quando as crianças cometem um erro, elas são tomadas por uma preocupação de ter nos decepcionado, especialmente se nosso modus operandi é impor um castigo. E então, para que possam permanecer em nossa órbita, a escolha mais fácil pode ser mentir. Interessante que muitas vezes nós adultos também não somos honestos e optamos pela via de uma mentirinha branda.
Agora, tente se lembrar de uma época em que você era criança e mentiu para seus pais – isso não deve ser tão difícil porque todos nós já fizemos isso! Então pergunte a si mesmo, qual foi a força motriz por trás de dizer uma mentira em vez de escolher admitir o que quer que você estivesse escondendo? Ou não tinha certeza? Ou estava preocupado? Na maioria das vezes, a resposta está no medo de ser rejeitado, de sentir envergonhado ou perder o apreço dos nossos pais.
Você se lembra de ter sido pego em uma mentira? E se você foi envergonhado por mentir, o que isso lhe ensinou? Talvez como mentir melhor da próxima vez. Talvez para manter seus segredos para si mesmo. Talvez porque seu lado mais sombrio não fosse aceitável e precisasse ser recalcado bem ali onde ninguém pudesse ver.
O Dr. Gabor Maté fala sobre a tensão que frequentemente existe entre apego e autenticidade – duas das necessidades mais críticas de uma criança. Se uma criança não pode ter autenticidade e apego ao mesmo tempo – se ela não for aceita como seu verdadeiro eu autêntico, ela precisa escolher um. E toda vez ela escolherá sacrificar seu eu autêntico em uma tentativa de preservar suas necessidades de apego. Então, se seu apego estiver em risco por causa de um erro que a criança cometeu, naturalmente ela se lançará em direção a uma mentira.
As crianças precisam dos pais para sobreviver e é instintivo que elas mantenham proximidade e conexão a todo custo – mesmo que às vezes isso signifique mentir.
Fonte: Revista Crescer