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Muitos anos de vida

Régine Sirota, pesquisadora responsável pela inserção da sociologia da infância na França, fez dos aniversários de criança um dos seus campos de pesquisa medulares, percebido como fértil por ocasião das observações que fazia nos inúmeros aniversários de crianças que comparecia em virtude de seus filhos. É uma pesquisa que atenta para os rituais, tendo como objeto de análise a socialização. Para ela, o simples fato de falarmos em aniversário infantil, é sintoma de uma mudança do lugar da criança no conjunto dos rituais, sublinhando a própria evolução do status da criança, “isso acontece a partir de uma série de mudanças, pois um ritual não se reinventa, não se cria do nada, ele surge em uma explosão das referências sociais”¹.

O aniversário significa um dia, no ciclo anual, para a celebração do indivíduo, marcando a biografia da pessoa. Mas é um fenômeno permeado por construção do círculo social, num entrelaçamento, para as crianças, entre escola, amigos e família que mobiliza a cultura das infâncias e funciona como operador de identidade, atravessado por dinamizações de regras de civilidade e de controle ou repressão da decepção: “a construção da identidade da criança produz-se por meio de um verdadeiro quebra-cabeça de valores em um nó de tensões entre as quais terá ela mesma que construir a sua própria identidade, como indivíduo moderno”². Enviar os convites, preparar a celebração, a vestimenta, a decoração, o banquete, as atrações, o bolo de aniversário, a vela, as lembrancinhas, faz parte de um ritual que se aciona com a chegada dos convidados, a entrega dos presentes (com ou sem abertura pelo aniversariante no momento da entrega), a experimentação do banquete, as brincadeiras, o momento dos parabéns, a partilha do bolo de aniversário, a entrega das lembrancinhas.

E a pandemia, o que fez com os aniversários de crianças? Viver tempos de medo e de dor e ouvir, dentre as palavras mais ditas, “fique em casa”, “isolamento”, “saudade”, “lockdown”, tudo sob pena de ter de escutar a palavra “morte”, contraria as condições de uma festividade de aniversário. Já se espera que adultos façam suas escolhas sobre como celebram seus aniversários, mas, quando olhamos para as crianças, a expectativa é a de ver sua aldeia em seu entorno e de serem cumpridas todas as etapas do evento. Na quarentena, a materialidade do aniversário poderia ser usufruída apenas na intimidade do lar, e, por isso, já cancelava algumas necessidades anteriormente percebidas como essenciais no ritual. O coletivo poderia se fazer presente em um encontro, certamente, desde que mediado por algum dispositivo. Muitos presentes não foram entregues (até porque o medo de contaminação por objetos foi a tônica por muito tempo), tornando sem sentido, consequentemente, a preparação de lembrancinhas³. O parabéns no entorno do bolo de aniversário (o totem), já não gerava a multiplicidade de opções para se entregar a primeira fatia. As brincadeiras com os pares estavam ausentes. O som de festa se fazia pelo ruído de todos os microfones abertos e do canto desencontrado, no caso das conexões pelas telas, sem que o corpo pudesse despistar algum desconforto pelo barulho através do encontro e cumplicidade disponíveis nas trocas de olhares, de sorrisos compartilhados, nos toques de ombro no ombro.

Avançada a vacinação, no imprevisto segundo ano da pandemia, retorno de presencialidade em tímidas e pequenas celebrações puderam ser percebidas. Gozando de mesma condição de Sirota, a de frequentar aniversários em virtude de filhos, muito embora sem estruturar pesquisa sobre isso, algumas cenas puderam ser vistas. Encontros pequenos, guloseimas quantificadas e individualizadas, sem atrações contratadas, ambiente ao ar livre. Nessas oportunidades, o maior entusiasmo das crianças era o de, simplesmente, estar ali, um com o outro. A natureza com espaço e atmosfera suficientes para que elas criassem suas diversões. Esconde-esconde, pega-pega, conversas, brincadeiras com pedras e paus encontrados pelo chão, escalada em árvores.

Menos casa de festas. Menos pessoas. Menos comida. Menos consumo.

Mais natureza. Mais estar junto.

Muito se fala, embora o infortúnio incontestável, que a pandemia contém, pela exacerbação de todas as nossas maiores misérias, o germe da transformação. Mas a oportunidade da transformação não se coloca como um horizonte a ser alcançado, um futuro ainda a ser visto, ela se deu e se dá desde o primeiro dia da quarenta, num cotidiano radicalmente revolto e revolvido. Ficar em casa para fazer tudo, estudar, trabalhar, se exercitar, socializar, e viver a vida pelas telas foi a realidade vivida por muitos. Avistar essas cenas das crianças nas retomadas graduais de contato em seus aniversários e atentar para uma oportunidade de ressignificação dos valores, forçada pelos protocolos, fazendo com que estejamos mais voltados para as pessoas e menos para as coisas, é um testemunho de uma mudança que já aconteceu. Nossa tarefa é a de escolher se topamos bancar esse novo ou se vamos voltar a achar que precisamos, indispensavelmente, depositar nos objetos a essência dos momentos vividos. Conforme Maffesoli⁴, “os rituais não ‘dizem’. Eles sussurram o inefável. Dessa forma, eles estruturam a comunidade (...) os rituais constituem ‘uma ética da estética’: o sentir comum funciona como um cimento que não pode ser mais consistente do que já é”. Rituais se fazem no sentir com. O maior valor para o indivíduo, em seu aniversário, é o de poder estar com o outro. E isso as crianças já sabem.


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¹SIROTA, Régine. As delícias de aniversário: uma representação da infância. In: Revista Eletrônica de Educação, v. 2, n. 2, nov. 2008, p. 33). Disponível em http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/18

²Ibid (p. 34)

³Dinâmicas da dádiva e contradádiva, Marcel Mauss.

⁴MAFFESOLI, Michel. A palavra e o silêncio. São Paulo: Palas Athena, 2019, p. 83



JULIANA TONIN
Mãe do Gabriel e da Catarina. Comunicóloga, Pesquisadora e Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da FAMECOS/PUCRS. Doutora em Comunicação com pós-doutorado em Sociologia da Infância (Paris V - Sorbonne), Coordenadora do LabGim, Laboratório de Pesquisas da Comunicação nas Infâncias.