Meninas grávidas: situação do Brasil acende alerta sobre abusos sexuais
26 partos são realizados diariamente em meninas brasileiras de 10 a 14 anos
Pesquisa realizada pela Fiocruz, a Fundação Oswaldo Cruz, com participação da Escola de Enfermagem da UFMG, traduz, em números, um pesadelo do qual padece a infância brasileira: 26 partos são realizados diariamente em meninas brasileiras de 10 a 14 anos.
De acordo com a pesquisadora principal do estudo, a farmacêutica Isabella Vitral, a taxa de fertilidade é um importante indicador de saúde e de desenvolvimento social. O índice corresponde ao total de nascidos vivos sobre a população do sexo feminino. Por isso, a gravidez infantojuvenil pode acarretar problemas de acesso a serviços de saúde reprodutiva e sexual e à educação.
Entre meninas de 10 a 14 anos, a situação é ainda mais grave. Segundo Isabella, “no caso da adolescência precoce, a gravidez é ainda mais preocupante, porque traz mais riscos às gestantes, a mortalidade materna e perinatal é maior e os filhos nascidos vivos têm mais chances de prematuridade e de baixo peso ao nascer”.
Além das consequências sociais e econômicas para a vida dessas meninas e desses filhos, a pesquisadora alerta: em geral, a gravidez na faixa etária pesquisada está relacionada à violência sexual, especialmente a perpetrada por familiares no ambiente doméstico.
Dos 107.800 bebês nascidos no período de 2011 a 2021, que são filhos de mães entre 10 e 14 anos, um quinto é fruto de relações declaradas como união estável ou casamento. De acordo com o coordenador do projeto Ciranda da UFMG, o professor e advogado Fernando Jaime, todo contato sexual com crianças e adolescentes na faixa etária pesquisada pela Fiocruz é estupro: “O direito brasileiro repudia severamente a prática de ato sexual com pessoas menores de 14 anos de idade. O Código Penal, no artigo 207, define essa conduta como crime de estupro de vulnerável e prevê uma pena de, no mínimo, oito anos de reclusão”.
Sinais da violência
No Núcleo de Estudos e Pesquisa em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, a psicóloga voluntária Mery Oliveira costuma lidar com crianças e adolescentes grávidas vítimas de abuso sexual. Meninas grávidas muitas vezes são violentadas por anos sem os pais perceberem. A psicóloga da USP traz dicas para pessoas responsáveis por crianças desconfiarem de abusos ou gravidez. “Um critério básico que a gente indica é a observação daquela criança ou daquele adolescente comparando com ele mesmo tempos atrás. Mudanças significativas, como o isolamento, dificuldade de toque corporal, de ser tocado e mudança na vestimenta, por exemplo. No caso das meninas, elas tendem a camuflar as suas características femininas usando roupas fechadas que escondem o próprio corpo”, pontua Mery.
Atuando há anos no Hospital das Clínicas da UFMG, a professora e pesquisadora Sara Paiva estuda a saúde da mulher com foco na ginecologia e obstetrícia. Com décadas de experiência, ela costuma deparar com meninas grávidas no dia a dia do hospital: “Muitas vezes, quando eu estava nos plantões de obstetrícia no Hospital das Clínicas da UFMG, nós atendíamos meninas que chegavam gestantes, muitas vezes, acompanhadas da mãe, de uma tia ou de uma amiga e não fizeram pré-natal, e aquilo me intrigava bastante. Por que essas meninas não fizeram um acompanhamento? Depois de muito tempo, de muito estudar a violência e especificamente a violência contra menina, eu entendi que muitas dessas adolescentes que engravidam e chegam ao serviço de saúde sem terem feito acompanhamento engravidaram em decorrência de uma violência. Elas não contaram para outras pessoas que estavam grávidas, não contaram que sofriam a violência e que, dessa violência, veio a gestação e, por isso, elas não buscaram os serviços de saúde”.
Aborto legal
Uma das pesquisadoras envolvidas no estudo da Fiocruz é a professora da Escola de Enfermagem da UFMG Deborah Malta. Ela espera que os dados levantados pela pesquisa possam ajudar a conscientizar a sociedade e os políticos brasileiros sobre a necessidade de manter o aborto legal, mesmo após 22 semanas de gestão. Essa questão gerou um acalorado debate social em razão do projeto de lei 1904/24, que equipara o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro.
Segundo Deborah Malta, é comum a gravidez em meninas ser percebida apenas após as 22 semanas de gestação. A pesquisadora é enfática ao dizer que meninas não podem ser mães. “Elas não têm a altura nem o peso adequado. Isso representa um risco para elas, um atraso futuro também no desenvolvimento e no crescimento, um risco para que ela contraia outras doenças, inclusive também do ponto de vista do desenvolvimento mental. Essa criança também vai carregar muitos traumas, porque ela não consegue identificar o corpo totalmente modificado pela gravidez e não consegue entender as responsabilidades da maternidade”.
Série especial: o que precisa mudar
Para discutir a gravidez em meninas de 10 a 14 anos, à luz da pesquisa da Fiocruz com participação da UFMG, a Rádio UFMG Educativa produziu uma série de reportagens especiais sobre o tema. Nos três episódios, especialistas da USP, Fiocruz e UFMG avaliam as causas, consequências e apontam caminhos para a necessária mudança social para o fim dos abusos sexuais e da gravidez em crianças e adolescentes.
A produção e a reportagem são do jornalista Ruleandson do Carmo, com edição sonora do jornalista Breno Rodrigues. A série está disponível no Spotify, em formato de podcast.
Fonte: Andi Comunicação e Direitos