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Ir. Donavan Machado faz relato sobre voluntariado internacional no Líbano

Religioso conviveu por dois meses com famílias refugidas pelo Projeto Fratelli

De dezembro de 2022 a fevereiro deste ano, o Ir. Donavan Farias Machado fez uma experiência de voluntariado internacional no Líbano. Foram dois meses trabalhando para o Projeto Fratelli, fruto da união entre os Irmãos de La Salle e Maristas para atender crianças e jovens refugiados no país libanês.

Abaixo, convidamos você a ler o relato que o religioso fez a partir do que observou e sentiu ao longo desse período.


Cedo pela manhã, já saímos para buscar as crianças. Percorremos alguns bairros próximos ao Projeto Fratelli, e o que presenciei foram imagens do mais puro carinho e afeto. Famílias com seus filhos esperando ansiosos o ônibus chegar. “Sabah Al Khair, habibi!” (Bom dia, querido/a!). Essa era a saudação inicial da professora aos seus estudantes que já embarcavam no ônibus. A felicidade das crianças era algo contagiante. Ao partir, as crianças acenavam e enviavam beijos para aqueles que ficavam. Em uma das paradas, havia um grupo de cinco crianças, a maior devia ter uns 10 anos de idade. Ela foi acompanhar os seus dois irmãos menores até o ônibus. A despedida daquela pequena “família” foi algo muito significativo. Lançavam beijos e acenavam uns para os outros, na esperança de que esses voassem rapidamente ao seu destinatário porque o ônibus já partia. Felizes. Alegres. Ansiosos para chegar à escola. Isso me chamou atenção porque era um comportamento diferente do que eu já havia presenciado. Eu pensava: “mas é só uma escola, não tem nada demais!”, porém, não era apenas uma escola, e havia algo de fundo que a minha experiência de vida não tinha condições de perceber.

O Projeto Fratelli nasce da união entre os Irmãos de La Salle e Maristas, com o intuito de atender às demandas de crianças e jovens refugiadas no Líbano, em especial do povo sírio, em razão das guerras e perseguições que, por anos, assolam a região do médio e próximo oriente. Dessa maneira, para atender aos grupos marginalizados, que de outra forma não teriam a oportunidade de acessar os serviços educacionais mínimos, o projeto oferece a crianças e jovens mais vulneráveis um apoio socioeducativo, visando a proporcionar-lhes o nível educacional básico para terem a oportunidade de acessar o sistema educacional público libanês. Em um ambiente familiar e acolhedor, tendo como premissa básica os princípios universais de proteção à criança e ao adolescente, o projeto garante um espaço seguro e favorável para aprendizagem, desenvolvimento das capacidades individuais e coletivas, apoio psicossocial e vivência na diversidade, pois acolhe, em um mesmo espaço, muçulmanos e cristãos, sunitas e xiitas, meninos e meninas em prol de uma educação “sem barreiras”.

O Projeto Fratelli desenvolve uma missão importante em razão do serviço que é fornecido gratuitamente para as famílias. Os programas educacionais incluem aulas de idiomas, aulas de pré-escola para qualificar crianças refugiadas para escolas libanesas, aconselhamento, nutrição, esportes, acampamentos de verão, aulas de saúde específicas para cada gênero, creche, cursos profissionalizantes (mecânica, corte e costura, elétrica, gastronomia e cabeleireiro) e oportunidades de subsistência. Essa gama de atividades permite que a criança e o/a jovem possam se incluir no mundo, superando problemas como desempenho escolar, traumas, convívio, aceitação e respeito com o diferente. Pautas como empoderamento feminino são trabalhadas entre as jovens sírias, assim como oficinas sobre maternidade e cuidados na primeira infância são ministrados para mães e gestantes.

Para os jovens sírios, a pergunta que os acompanha a cada dia é: qual será o meu futuro? Eu terei um futuro? É importante salientar que a guerra na Síria, iniciada em 2011, gerou uma crise social, política, econômica e humanitária no Oriente Médio que afetou não só a Síria, mas também os países que receberam refugiados do conflito. O conflito afetou diretamente mais de 24 milhões de pessoas em todo o território sírio, destruindo cidades, famílias e o futuro de crianças e jovens. A guerra, além de produzir a morte de inocentes, fez com que milhares de pessoas deixassem o país em busca de vida nova longe dos conflitos. Segundo dados levantados pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur), o Líbano é a nação que abriga a maior população de refugiados no mundo. Cerca de 1 milhão de sírios se estabeleceram no Líbano, com grande impacto para o país, que tem um número muito elevado de refugiados em relação à população nacional¹.

Esse “boom” populacional desestabilizou muitas áreas de serviços essenciais para o país como, por exemplo, escolas, hospitais, fornecimento de água e energia. Por inúmeras circunstâncias do passado, que ainda hoje são “feridas” difíceis de serem curadas, não existe nenhuma política governamental ou normativa legal que possibilite ao refugiado sírio/a uma garantia de recomeçar sua vida com dignidade e possibilidade de futuro em território libanês. Milhares de famílias sírias vivem em casas superlotadas. Um terço das famílias encaminhadas aos serviços do Projeto Fratelli vive em prédios abandonados, em que as condições de moradia são muito difíceis devido à superlotação e às condições na infraestrutura dos prédios, além da contínua ameaça de despejo por parte das autoridades governamentais. Nesse contexto, a situação das famílias sírias refugiadas é extrema: a taxa de desemprego é muito elevada, as condições de trabalho são precárias, a moradia e as condições sociais geram inúmeros conflitos nas famílias e entre elas, os crimes contra crianças, adolescentes e mulheres são elevados, casamentos precoces são realizados, trabalho infantil é recorrente, muitas crianças e jovens não frequentam o sistema educacional e a situação é agravada pela impossibilidade de obtenção de documentos que garantam a residência legal no país².

Nesse período de dois meses, convivi com crianças e jovens vindas de famílias que, por gerações, põem-se a caminho na busca de melhores condições de vida. Expulsos e fugidos de suas terras por conta de guerras, perseguições, fome e morte – portadores de feridas históricas que nunca cicatrizam –, eles partem em busca da sobrevivência, por vezes se submetendo a trabalhos perigosos e mal remunerados, na esperança de assegurar o mínimo de subsistência para si e para sua família. São aqueles que buscam as migalhas que caem das mesas ricas e suntuosas. Nossos irmãos e irmãs continuam o seu caminho em busca de melhores condições de vida. Ainda não chegaram na “terra prometida”, contudo, no meio do caminho, essas famílias encontram alguns portos seguros que lhes permitem experimentar aquilo que lhes foi negado: amor e dignidade. Acredito que o Projeto Fratelli seja um porto seguro importante para muitas famílias, tanto sírias quanto libanesas. Lá pude testemunhar o que Jesus de Nazaré deixou claro para toda a gente que o seguia: “Amai uns aos outros como eu os amei” (Jo 13,34).

 

¹ Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2020/08/07/libano-tragedia-crise-e-pandemia-agravam-necessidades-da-populacao-local-e-refugiados/. Acesso em: 4 mar 2023.

² Disponível em: https://fmsi.ngo/en/lebanon-fratelli-project/. Acesso em: 4 mar 2023.