Escolas desenvolvem projetos antirracistas e valorizam a cultura africana
No mês dedicado à Consciência Negra, instituições destacam os projetos realizados sobre o tema ao longo do ano
Em 2011, uma lei instituiu o 20 de Novembro como o Dia da Consciência Negra e a data tem as mãos de um gaúcho. As pesquisas realizadas pelo escritor Oliveira Silveira, nascido em Touro Passo, distrito de Rosário do Sul, dentro do Grupo Palmares, deram início à proposição para a criação de um dia para voltar os olhares para a cultura negra e para o problema do racismo. Hoje, a data que faz alusão à morte de Zumbi dos Palmares tornou-se feriado nacional e passou a movimentar não apenas os movimentos sociais negros, mas também a mídia. Nas escolas, não foi diferente, já que a temática do combate ao racismo e da valorização da presença da cultura negra no Brasil está presente também no cotidiano de estudantes e educadores, haja visto a última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), cujo tema da redação foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.
Mais do que trazer o assunto para a sala de aula durante apenas um mês, muitas instituições estão investindo para tornar cotidiano o pensamento sobre o racismo estrutural e, principalmente, desconstruir ideias do senso comum que o perpetuam.
Um dos exemplos vem do Colégio Glória, de Porto Alegre que, em uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), realiza visitas de seus estudantes de Ensino Médio ao Quilombo dos Alpes, localizado na zona sul da capital gaúcha. O projeto, iniciado em 2023, tem como ponto principal proporcionar aos alunos o contato com diferentes realidades e tornar suas vivências ainda mais ricas, especialmente quando se fala de uma educação antirracista. Coordenador da Pastoral da escola e professor de ensino religioso, Paulo Leandro Nogueira dos Santos explica que os estudantes puderam conhecer um pouco da história e da formação do quilombo por meio da recepção da liderança do local, Rosângela da Silva Ellias, mais conhecida como Janja.
Neste primeiro contato, os estudantes tiveram a oportunidade de aprender mais sobre as lutas e as conquistas do Quilombo dos Alpes, além de realizarem uma troca com outros jovens que vivem no local. “Eles aprenderam sobre todo o processo de povoamento daquela região e tiveram a oportunidade de ter uma outra visão da história da escravidão, que é o olhar do povo negro”, lembra o professor. Após essa vivência, os alunos foram incentivados a produzir fotos e vídeos sobre o quilombo, trabalho que foi apresentado na mostra cultural realizada anualmente na escola.
O contato com a comunidade do Quilombo dos Alpes seguiu mesmo depois desses encontros. Durante o período da enchente, em maio deste ano, a escola se mobilizou para arrecadar doações de alimentos e roupas e há um interesse constante dos estudantes por colaborar com a comunidade. “Uma outra experiência que nós tivemos esse ano foi uma oficina de ervas medicinais com a Janja, recordando toda a sua tradição, a sua ancestralidade, e a dimensão religiosa também, que está imbuída dentro desse processo”, conta Paulo, que acredita que os alunos participantes do projeto, que deve continuar em 2025, vão aprender a valorizar e acolher a diferença, além de promover a igualdade étnica e a luta contra o racismo a partir dessa interação com a comunidade.
Em Santa Vitória do Palmar, extremo sul do Estado, quase fronteira com o Uruguai, uma outra iniciativa tem movimentado os estudantes do Colégio São Carlos. Em 2021, a instituição promoveu palestras e debates com pessoas negras da cidade e também um incentivo para a leitura de autores negros entre os estudantes. Para o segundo ano do projeto, as atividades que eram restritas ao mês de novembro começaram a ser trabalhadas junto aos alunos da educação infantil até o quinto ano do ensino fundamental, desde o início do ano letivo. A ideia é que os professores desenvolvam ao longo do ano propostas de atividades sobre o tema da consciência negra, que são apresentadas para a comunidade em uma mostra, que toma conta da escola apresentando todas as descobertas dos alunos. Porém, o que hoje é um evento cativo do calendário do colégio, começou como um imenso desafio.
“Precisei trabalhar com o corpo docente, que é majoritariamente branco e não estava tão ligado na importância do assunto. Fiz várias indicações de leitura, reuniões de formação para discutir artigos e entrevistas”, comenta Celis Pereira, coordenadora pedagógica do Colégio São Carlos.
A questão do racismo linguístico também esteve no centro dessa jornada de mudança da mentalidade dos professores e alunos. Tirar do vocabulário expressões como “criado-mudo” e “fazer nas coxas” foi um trabalho árduo e que envolveu não apenas a comunidade escolar, mas as famílias dos estudantes. “Muitos compartilharam com os pais sobre a origem dessas expressões e acabaram colocando-os para pensar sobre isso. É algo cultural, que fazia parte das nossas conversas, mas que é preciso ser revisto e nós estamos fazendo a nossa parte”, pontua a coordenadora, que acredita que a sua luta trouxe mudanças. Além da conscientização dos professores, a proposta trouxe abertura para que alunos vítimas de racismo procurassem a coordenação da escola para denunciar.
“Ele nos contou que isso já vinha acontecendo, mas que só agora ele teve coragem de contar, pois se sentiu acolhido por conta das iniciativas da instituição. Sempre incentivamos que não se pode tolerar o racismo e temos tido um retorno incrível dos alunos”, exalta Celis, que acredita que a empatia foi a estratégia encontrada para unir a escola em nome do projeto.
Dicionário antirracista nas redes sociais
E não é apenas da sala dos professores que surgem iniciativas importantes para a educação antirracista. A estudante do segundo ano do Ensino Médio do Colégio Marista Assunção, Laila Bernardi, realizou uma pesquisa de iniciação científica, orientada sobre a percepção dos estudantes da instituição sobre o racismo e o antirracismo. Ao perceber que os assuntos não faziam parte do cotidiano dos colegas, Laila criou o Projeto de Educação Antirracista (PEA), que foi aprovado pela coordenação pedagógica da escola e teve início em 2021 e, a partir do ano passado, passou a ser acompanhado pelo Ir. Donavan Machado, integrante da Pastoral da escola.
“Começamos com ações mais exponenciais, e foi muito difícil. Com a chegada do Ir. Donavan na escola, ele foi designado para o projeto e passamos a ter mais atividades e visibilidade”, explica a estudante. Hoje, o PEA promove um clube de leitura mensal, onde aborda obras de autores negros, debates e palestras, além do Dicionário Antirracista, que consiste na publicação de palavras e expressões no Instagram da instituição.
A ideia, inspirada no livro homônimo da filósofa brasileira Djamila Ribeiro, não é apenas rever a questão do vocabulário racista, mas também trazer um pouco da história africana e sua influência na cultura brasileira. Por conta de algumas vivências raciais da infância, Laila começou uma série de leituras que a fizeram entender o seu passado. “Isso me trouxe autoconhecimento e fez com que eu me sentisse empoderada para tomar a frente do projeto”, lembra.
Para Ir. Donavan, que acompanha o projeto, a iniciativa traz um diferencial dentro da formação dos estudantes, oferecendo a oportunidade de uma quebra de paradigma para eles. “Temos um déficit de reconhecimento da nossa própria cultura e identidade. A educação antirracista não é só lutar contra o crime do racismo, mas lutar para a construção de uma identidade de um povo que teve a sua cultura apagada. É um compromisso social nosso”, afirma o professor.
Fonte: SINEPE-RS - Educação em Pauta