Como a violência contra crianças afeta a saúde mental do público infantil
Na calçada de casa, o crime toma o espaço que deveria ser de brincadeira para milhares de crianças na periferia de Fortaleza, e também de muitas outras cidades do Brasil.
Na calçada de casa, o crime toma o espaço que deveria ser de brincadeira para milhares de crianças na periferia de Fortaleza, e também de muitas outras cidades do Brasil. Observar a violência urbana tão de perto, como no caso do menino de 10 anos morto e de outras 8 crianças e adolescentes feridos por tiros durante uma tentativa de chacina no Barroso, causa prejuízo para a saúde mental dos pequenos.
Quando uma criança enxerga o alvo desses atentados sendo alguém de pouca idade, as marcas podem ser maiores. As experiências traumáticas na infância e adolescência podem desregular o comportamento, causar o sentimento de insegurança e afetar até a aprendizagem.
“As crianças passam a ter medo de viver, de sair de casa e de confiar nos outros. Elas são tomadas por pesadelos e por fantasias horríveis, de que o mundo não é um lugar onde elas vão estar protegidas. E não tem nada mais ameaçador do que você sentir que a sua vida não vai ser cuidada”, detalha a doutora em Psicologia Clínica Alessandra Silva Xavier.
A violência, inclusive, é um dos maiores fatores que agravam a saúde mental, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS). “A violência, em diferentes dimensões — seja violência institucional, física, da exploração sexual, de abuso, do bullying”, amplia Alessandra.
Conviver com ocorrências de assassinatos e violência doméstica, por exemplo, afeta a relação que os pequenos têm com o ambiente, como acrescenta a colunista do Diário do Nordeste.
Com uma linguagem agressiva, os casos de violência evidenciam que sair de casa, ter amigos e explorar o bairro pode ser perigoso.
“Eu não posso aproveitar os esportes, eu não posso muitas vezes usufruir dos equipamentos de saúde, porque eles às vezes estão dominados no território. Eu não posso atravessar esse território, eu não posso ir a outro lugar”, exemplifica Alessandra.
“Infelizmente, Fortaleza tem sido uma cidade que mata suas crianças e seus adolescentes. Isso, enquanto projeto de cidade e projeto de esperança é muito sério, porque veja só: essa criança que morre impacta uma família, impacta os irmãos, impacta os colegas da escola, impacta professores”. Alessandra Silva Xavier, doutora em Psicologia Clínica.
Essa perda de vínculos interfere diretamente na sensação de esperança e abala um aspecto valioso para a saúde mental: ter uma rede de apoio.
Luciana Martins Quixadá, pós-doutora em Psicologia e doutora em Educação, avalia que o impacto também recai sobre a percepção de si e do mundo. “Se estamos inseridos em um cenário social de violência urbana, isso impactará nosso processo de subjetivação, ou seja, quem somos e seremos”.
Apesar disso, nem toda criança é afetada da mesma forma. Recortes sociais e de identidade são determinantes para o nível de prejuízo da exposição à violência.
“Em uma cidade extremamente desigual e impactada por um racismo estrutural, por exemplo, por mais que todos nós possamos ser afetados pelas consequências dessa violência, sabemos que ela não afeta todos da mesma forma”, aponta Luciana.
Quais são os efeitos
Uma das consequências da exposição à violência é o isolamento, comportamento agressivo e até urinar na cama, por exemplo, nas crianças. Entre as sensações comuns, o pavor, o medo e o desamparo são vivenciados pelos menores.
“Quando a ideia do outro é só de inimigo, quando a única coisa que eu posso esperar é a violência, isso gera níveis de ansiedade, isso pode gerar perdas em relação aos cuidados em saúde”, completa Alessandra.
Com o passar dos anos, essas pessoas podem ter um uso abusivo de álcool ou outras drogas e dificuldades de sociabilização.
“Quando eu vejo um amigo ser morto, quando eu vejo um parente ser morto, quando eu fico com a sensação de que a qualquer momento eu posso perder pessoas que eu amo e que eu nunca vou estar seguro em nenhum lugar”. Alessandra Silva Xavier, doutora em Psicologia Clínica.
Algumas repercussões da violência na saúde mental:
- Apatia
- Dificuldade para dormir
- Urinar na cama (ou voltar a fazer isso)
- Depressão
- Ansiedade
- Sensação de insegurança
- Problemas de concentração
- Comportamento agressivo
- Mal estar gastrointestinal
Luciana Quixadá explica que os prejuízos podem se estender por anos. “Viver cotidianamente em um território com múltiplas violências como as violências domésticas, as gestadas por facções criminosas e mesmo pelo Estado, quando há negação de direitos, leva a sofrimentos múltiplos e que podem ser duradouros, como depressão, altos níveis de ansiedade, transtornos alimentares e de imagem de si, má qualidade do sono, dentre outros”.
Como deve ser o acolhimento
Cuidar da saúde mental dos pequenos que vivenciam situações de violência deve ser uma prioridade. “É necessária ajuda profissional o quanto antes, pois quando o tratamento é feito precocemente há um bom prognóstico para a qualidade de vida da pessoa”, pontua Luciana.
O sofrimento ocasionado pela violência urbana é multifatorial, ou seja, resulta de diversas causas e o acompanhamento psicológico é um suporte, mas não deve ser o único, como analisa. “A saúde é também consequência da garantia de vários outros aspectos da vida: alimentação, moradia, segurança, educação, cuidado, amor parental…”, lista.
“Então, a receita para o enfrentamento à violência urbana, por mais complexa que seja, passa necessariamente pelo enfrentamento às desigualdades socioeconômicas e pela garantia de direitos. Para isso, por mais que a sociedade civil precise se articular, o Estado tem um papel fundamental e indispensável”, aponta.
“Em termos de desenvolvimento mental e emocional, a infância é o primeiro momento da nossa inserção no mundo. É aí que produzimos nossas primeiras memórias, afetos e impressões desse mundo e a partir dos quais vamos estabelecer a maioria dos nossos vínculos e ações tanto na infância como na vida adulta”.
Luciana Quixadá, pós-doutora em Psicologia.
Fonte: Andi Comunicação e Direitos