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Bullying, cyberbullying, suicídio e escola: qual a relação entre tudo isso?

Conheça a diferença entre as agressões, como ela pode chegar até a morte de uma criança ou adolescente e por que é preciso conversar sobre isso com crianças pequenas em casa e na escola, desde a educação infantil

Nenhuma lei será capaz de proteger crianças e adolescentes do bullying se não houver ações concretas e contínuas para lidar com as agressões. Prova disso é que, desde 2015, quando o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) foi sancionado, nada mudou nas escolas em relação à prevenção desse tipo de sofrimento na infância e adolescência. E por que nas escolas? Porque é exatamente nesse ambiente, com seus pares, que eles aprendem a se socializar, se respeitar, entender diferenças, além de ser onde passam a maior parte do seu tempo.

No entanto, o cuidado que o bullying deveria ter nas instituições de ensino está bem longe do ideal, como explica o psiquiatra da infância e adolescência Gustavo Teixeira, sócio-fundador do Child Behavior Institute of Miami (CBI), PRIMUM Faculdade e membro da Academia Americana de Psiquiatria da Criança e Adolescência: “Os entraves para que o bullying seja trabalhado dentro das escolas é porque esse comportamento violento e agressivo entre estudantes não é valorizado”. Como consequência, os problemas de saúde mental das crianças e adolescentes em decorrência do bullying passa despercebido.

Mas também só o olhar da escola não é eficaz, é preciso que a família e todos que estão ao redor saibam identificar sinais de que algo não está bem e, principalmente, saber como agir. Confira abaixo entrevista na íntegra com o psiquiatra Gustavo Teixeira. E lembre-se: “Cuidar de cada criança é cuidar do país inteiro”, como reforça a campanha da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal em comemoração ao Mês da Primeira Infância, que acontece todo mês de agosto.

CRESCER: Em novembro de 2015, foi sancionada a lei 13.185, de 2015 que institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) em todo o território nacional. Anos depois, pouco ou nada mudou nas escolas. Quais são os entraves para que, ainda hoje, o bullying não seja visto com a seriedade que merece dentro das instituições?
GUSTAVO TEIXEIRA: O que não falta no Brasil é lei, mas o que falta de fato é a aplicação das leis. É um problema que transborda a área do comportamento, do bullying. Os entraves para que o bullying seja trabalhado dentro das instituições é porque esse comportamento violento e agressivo entre estudantes não é valorizado. De forma geral, as escolas brasileiras enxergam como responsabilidade delas simplesmente o acadêmico. O objetivo é jogar muito conteúdo para os estudantes, com foco no vestibular, no Enem... É preciso um sistema educacional que vise a formação do indivíduo como um todo. O papel de educar um filho é, primeiramente, do pai e da mãe, mas tem uma série de outros conceitos que devem ser trabalhados em conjunto e por toda a instituição educacional, que é conhecer e respeitar a individualidade e diferenças de cada um, ensinar trabalho social, trabalhar regras, limites, ética. É fundamental uma escola que ensine conteúdos que vão ser importantes para a vida profissional e afetiva desse estudante. O que tem acontecido é: “Aconteceu online, fora da escola, não tem nada a ver com a gente”. Essa postura clássica das instituições de ensino tem que mudar.

C.: Por que a escola tem papel fundamental no combate ao bullying?
G.T.: O comportamento bullying começou a ser estudado de forma científica a partir de estudos de escolas suecas na década de 70. Ou seja, o núcleo e a identificação do problema sempre foi a escola. Posteriormente, vieram outros estudos, europeus, americanos, sempre entendendo que o início desse problema ocorre na infância, na adolescência, no ambiente em que o jovem passa a maior parte do seu tempo socializando, que é o escolar. Então é fundamental que as escolas reconheçam e entendam isso, e o que é o comportamento bullying. Se você chegar numa escola e perguntar aos professores, provavelmente a grande maioria não vai saber responder. Eles não entendem o impacto que isso tem na vida das crianças e dos adolescentes, das possíveis consequências — inclusive suicídio, que é muito frequente, infelizmente, em todos os lugares do mundo: nos Estados Unidos, na Europa, no Brasil… Faz dez anos que publiquei meu primeiro livro sobre bullying, e vemos esse tipo de situação ocorrendo de forma repetitiva e, na maioria das vezes, nada foi feito nas escolas. Eu vejo instituições de ensino no mundo inteiro fazendo projetos anti-bullying, tendo uma Tolerância Zero, trabalhando isso em sala de aula desde a educação infantil. O bullying é um problema que atinge todas as escolas no mundo inteiro, públicas, privadas, de ensino rígido, liberal, em grandes centros urbanos ou em cidades pequenas. Mas ele deve ser reconhecido, valorizado e encarado de frente, em conjunto com a família e com toda a sociedade. Caso contrário, continuaremos com um aumento significativo de quadros depressivos, ansiosos, tentativas de suicídio, abuso de álcool, drogas e por aí vai.

C.: Existem países onde o combate ao bullying é referência?
G.T.: Tem muitos países que têm programas e projetos anti-bullying, como na Suécia e na Finlândia, que foram o berço dos estudos sobre o tema. Eu posso dar como exemplo as escolas daqui da minha cidade (Weston, Florida, Estados Unidos): crianças aprendem desde cedo, e isso é intensificado ao longo da trajetória escolar, o que é o comportamento bullying e que existe tolerância zero em qualquer caso de agressão física, verbal ou moral de uma forma repetitiva. A relação desigual de poder não é tolerada e deve ser denunciada. Se esse tipo de comportamento ocorre, há intervenções com o agressor e com a vítima. Pais e responsáveis são chamados para conversar. Até as universidades têm projetos anti-bullying, porque são situações problemáticas que podem ocorrer ao longo da vida. Não adianta nada a escola se mobilizar somente quando acontece uma tragédia, como suicídio, e fazer palestra com os pais, professores, abrir espaço para conversa e, de repente, depois de uma intervenção por um mês, esquecer do assunto. Nunca mais vai falar nesse tema? Isso é um grande absurdo. Um bom trabalho de prevenção e de combate ao bullying tem que ser feito de uma forma continuada, na vivência diária desse aluno, ao longo de sua carreira acadêmica inteira. Mas isso só vai existir se a escola realmente reconhecer a importância desse problema, porque vai ter que trabalhar isso no dia a dia, de forma sistemática.

C.: Quais sinais alertam que uma criança está sofrendo bullying?
G.T.: Quanto mais jovem a criança, menor é a capacidade dela de verbalizar exatamente o que está ocorrendo. Então, muitas vezes, sofre agressões de forma repetida e tem medo de contar aos pais. Daí a importância de sempre ter uma conversa franca com o filho, desde cedo. Ele precisa saber o que é o bullying; quais são esses atos de agressões físicas verbais ou morais. Temos que ensinar como ocorre essa relação desigual de poder. Os pais precisam traduzir isso para uma criança de 5, 6, 7 anos, com uma linguagem que ela consiga entender, dando exemplos. Em relação a sinais, fique atento a sintomas físicos, como dor de barriga, de cabeça, e comportamentos, como não gostar ou não sentir prazer de ir à escola, não ser convidada para a festa dos colegas ou não querer participar, ficar chorosa aos domingos… Já, nas mais velhas, vale observar se chega muito tarde ou atrasada à escola porque desvia o caminho, se o uniforme chega sujo, rasgado. Por fim, observe sintomas de tristeza, falta de motivação, insônia, pesadelos ou dificuldade para dormir, em qualquer faixa etária.

C.: Após identificar, qual o primeiro passo a ser feito?
G.T.: O primeiro passo é conversar e explicar que você está tentando protegê-lo. Diga que vai trabalhar, junto com a escola, para que isso não ocorra mais. Então, entre em contato com a escola e explique a gravidade do problema e o impacto negativo que isso está trazendo na vida do seu filho. A solução deve ser feita sempre junto com a escola. Afinal, o mínimo que se espera de um ambiente escolar é que a criança se sinta bem ali e tenha o direito de não sofrer nenhum tipo de violência ou agressão.

C.: E se eu, pai ou mãe, sei que o agressor é o meu filho. O que fazer?
G.T.: É uma posição difícil para os pais e muitos acabam ficando na defensiva. No entanto, o primeiro passo é a família trabalhar a aceitação e entender os motivos que levou a criança a esse comportamento. Vale buscar ajuda profissional de um psicólogo que possa orientar a criança e a família. E sempre trabalhar junto à escola, para que ela seja parceira nesse momento com os pais e contribua para a resolução do problema.

C.: Um estudo da OMS mostrou que 1 em cada 6 crianças em idade escolar sofre cyberbullying. Olhando em retrospectiva, a chegada das redes sociais amplificou o problema?
G.T.: Ao analisar as pesquisas científicas com relação ao bullying desde a década de 70, os estudos epidemiológicos mostram uma flutuação normal de incidência do comportamento bullying. Não está aumentando e nem diminuindo. Agora, o cyberbullying, obviamente, é um novo fenômeno. Nos últimos 10, 15 anos houve um aumento crescente dessa modalidade por razões óbvias: o advento de novas tecnologias. A vida das crianças gira em torno da comunicação através dos smartphones, então esse tipo de comportamento acaba assumindo uma dimensão ainda maior na vida delas. E não dá para a escola se eximir do cyberbullying, com a justificativa: “Ah, isso aconteceu na internet, não tem nada a ver com a gente”. Claro que tem tudo a ver. Aconteceu na internet, mas envolve os alunos da escola. Os autores das agressões são da escola. A criança vítima é da escola. Todos os personagens são da escola. Então é óbvio que, sim, ela tem responsabilidade. E o papel das instituições é trabalhar a prevenção, fazer as intervenções que precisam ser feitas.

C.: Sofrer ou fazer bullying. Ambas as crianças estão em sofrimento?
G.T.: Sem dúvida nenhuma. O alvo das agressões, por razões óbvias, vai precisar de muito suporte emocional, da escola, da família e de psicólogos. Já a criança agressora precisa passar por uma avaliação também: ela está passando por questões familiares importantes? É vítima de violência doméstica em casa? Tem quadros de ansiedade e depressão? É preciso entender para que ela receba tratamento adequado.

C.: E como é possível diferenciar uma briga ou discussão normal entre as crianças de um comportamento bullying?
G.T.: Em primeiro lugar, é importante saber o que é, por definição, o comportamento bullying. São atos de agressão física, verbal ou moral que ocorrem numa relação desigual de poder entre um estudante e outros estudantes de uma forma continuada. Então para ser caracterizado bullying, a violência não precisa ser física apenas e deve ocorrer de uma forma repetitiva ao longo do tempo. Essa criança ou adolescente não sabe se defender, não consegue se defender nem pedir ajuda, e fica recebendo agressões repetidamente. Isso não quer dizer que uma criança que é agredida uma única vez não necessite de intervenção. A violência nunca deve ser permitida, nunca deve ser tolerada, mas não se pode chamar de bullying: pode ser um episódio.

C: Qual o impacto desse desgaste emocional na vida de uma criança?
G.T.: Além das experiências práticas que observamos na clínica, há diversos estudos epidemiológicos que evidenciam os prejuízos do comportamento bullying para a criança, como quadros de ansiedade e depressão. O importante é deixar claro que ninguém vai ter um episódio depressivo ou um transtorno de ansiedade apenas por fatores ambientais. O que vai determinar se uma pessoa sadia terá ou não um transtorno de comportamento são dois fatores: componentes biológicos genéticos e fatores desencadeantes. Na maioria das vezes, quando identificamos quadros de suicídio, essa criança sofreu agressão através do bullying de uma forma repetitiva. Junto com o potencial biológico e genético, ela tem um quadro de depressão que, associado a esse estresse tóxico ambiental, provoca um gatilho que pode levar ao suicídio. Porém, antes disso, ninguém (nem família, nem escola) identificou a depressão nessa criança e nenhuma atitude foi tomada. Por fim, vale lembrar que estudos mostram que a maioria das crianças que sofre agressões físicas, verbais ou morais de forma repetitiva dentro tem chance maior de continuar sendo alvos de agressões de bullying na adolescência e também na idade adulta no ambiente de trabalho. Existe até o termo de workplace bullying, do comportamento bullying ocorrendo no ambiente de trabalho. A explicação para isso é que elas nunca aprenderam a desenvolver estratégias de defesa com relação a essa violência porque o problema nunca foi reconhecido nem visto, por ninguém ao seu redor.