Criança e consumo: quem consome, o que é consumido?
A criança é um sujeito de direitos, assim como outra pessoa de qualquer idade. Essa condição resulta diretamente da Constituição de 1988. O que hoje não é novidade, na época foi inovador. Até então, o ordenamento jurídico brasileiro só levava a criança em consideração na sua vida de relação: com os pais, com a escola, frente ao próprio Estado quando cometesse algum ato infracional – e neste caso era tratada como “menor” de idade.
A Constituição de 1988 caracterizou-se por posicionar a pessoa humana no centro do sistema jurídico. A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República e o país tem, entre os seus objetivos, “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Especificamente sobre a criança, o art. 227 da nossa Constituição atribui à família, à sociedade e ao Estado, “assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade” diversos direitos ali enunciados, “além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violação, crueldade e opressão”.
Exploração diz respeito a qualquer forma de abuso que se sirva da criança para um fim que não condiz com o legítimo interesse dela.
O Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.256/2013) complementa protegendo a criança de “toda forma de violência e de pressão consumista e exposição precoce à comunicação mercadológica”.
O consumismo está no centro das preocupações com a criança e não é para menos. As redes sociais demonstram o quanto a criança é alvo do marketing: brinquedos, jogos e outros objetos de interesse infantil são “desempacotados” em lives de influenciadores digitais, fazendo uma promoção sibilina do produto. Trata-se de publicidade disfarçada.
A criança é alvo da publicidade sob três formas: como consumidora de produtos infantis, como influenciadora do consumo dos pais e como futura consumidora de produtos, desde já fidelizada.
O Código de Defesa do Consumidor considera abusiva a publicidade que “se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança”. Publicidade que utiliza recursos como músicas infantis, personagens do universo infantil, desenhos com profusão de cores, é presumivelmente abusiva e incorre na vedação do Código de Defesa do Consumidor, que também considera abusivo prevalecer-se da idade do usuário para impingir-lhe um produto ou serviço.
A criança percebe o mundo do modo que os adultos o apresentam. Vivemos em uma sociedade marcada pelo efêmero e pelo descarte. Substituímos nossa visão de futuro por prazos de validade, que não são determinados por durabilidade, mas por novos lançamentos. Na sociedade de consumo, o valor das pessoas está no modo como se apresentam, especialmente nas redes sociais, em que o mandamento único é ser (ou parecer) feliz.
Nesse universo, a criança aprende que os brinquedos têm marca, que pode se reproduzir em alimentos, roupas, material escolar. Os super-heróis a acompanha em tudo, nos seus aniversários e dos amiguinhos. Muito cedo, ela é alfabetizada digitalmente e passa a fazer longas migrações para universos míticos enquanto os pais almoçam ou conversam com outros adultos. Enquanto isso, é capturada pelo consumismo, que se imiscui nos programas dos super-heróis ou se comunicam diretamente com ela. Mais do que isso: descobre no mundo paralelo das telas pessoas que falam a linguagem dela, inclusive crianças como ela, de quem se torna amiguinha virtual e quem passa a seguir no seu comportamento, querendo comprar o que elas compram, consumir o que consomem, viver como elas vivem.
É inevitável que a criança tenha contato com a tecnologia e com o modo de viver da sociedade atual. A tecnologia deve servir aos propósitos construtivos de qualquer engenho humano, contribuindo para a construção de um mundo melhor para todos, porém, na sua relação com a tecnologia da comunicação, incentivadora do consumo, é necessário evitar que o futuro da criança seja consumido.
A primeira tarefa de quem educa hoje é fazer ver à criança que o imediatismo e sedução do mundo onírico e fantasioso, prometido pelo consumismo, é ilusório. É demonstrar à criança a perenidade dos valores humanistas e a recompensa da ética que vê no próximo alguém que merece a mesma consideração de que nós nos achamos merecedores; que somos todos iguais e merecemos igual oportunidade de desenvolvermos as nossas potencialidades e talentos de pessoa humana, fadadas a um destino superior; que as coisas têm uma função de utilidade; que elas têm preço, mas que a dignidade é inegociável; e que a dignidade é humana.
Recentemente, o escritor israelense Yuval Harari disse que as pessoas que realmente vão mudar o mundo são as que hoje têm 10 anos. Cabe perguntar: o que estamos ensinando a elas?
ADALBERTO PASQUALOTTO
Professor da Escola de Direito da PUCRS