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Racismo na educação infantil expõe crianças negras a ciclo de violências

Levantamento indica que educação étnico-racial não faz parte do currículo de 89% das turmas de creche e pré-escola do país; especialistas apontam que o combate ao racismo é marcado por desafios na comunidade escola

As crianças negras na primeira infância são confrontadas com uma realidade que as coloca em desvantagem desde os anos iniciais da vida. O racismo não poupa nem os espaços, aparentemente inocentes, como as creches e escolas infantis.

Desde a ausência de representação positiva de personagens negros em materiais didáticos e livros, invisibilidade, marginalização até piadas e apelidos, os pequenos são expostos a um ciclo de violências que se estende por toda a vida e ultrapassa gerações.

O estudo “Avaliação da Qualidade da Educação Infantil: Um retrato pós BNCC (Base Nacional Comum Curricular)”, publicado em 2023 pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e pelo Itaú Social, aponta que 89% das turmas de creche e pré-escola não contam com aprendizados relacionados à educação étnico-racial.

O levantamento inclui 12 municípios, dois em cada região do país. Ao todo, foram avaliadas 3.467 turmas (1.683 de creche e 1.784 de pré-escola) e a pesquisa revelou ainda que materiais com conteúdos pedagógico e científico de várias origens étnico-raciais não foram encontrados em 70% das turmas.

Educação infantil sob o fantasma do racismo
A doutora em educação e diversidade étnico-racial, Lucimar Rosa Dias, coordenadora do grupo de estudos ErêYá e membra do comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), explica que na educação infantil o trabalho educacional deve acontecer a partir de interações e brincadeiras, e o racismo ocorre em uma dimensão institucional, se relacionado com as formas de atuação dos adultos em relação às crianças negras.

“No processo de interação, há muitas denúncias de crianças que não são respeitadas na sua identidade étnico racial, nos momentos em que a questão da identidade racial se coloca para as crianças negras é sempre de uma perspectiva negativa. Elas não são identificadas e não recebem a mesma relação de afeto que as crianças brancas recebem”, pontua.

Lucimar acrescenta que crianças de zero a seis anos ainda enfrentam a negação do direito a uma educação antirracista e plural do ponto de vista da diversidade étnico racial. “As crianças negras têm sido penalizadas pela negação da história e cultura afro-brasileira, desde o berçário como uma perspectiva que orienta todo organização do trabalho pedagógico.”

Desafios de educadores na identificação do racismo
Para a especialista, os desafios enfrentados pelos educadores na identificação e no combate ao racismo na educação infantil estão relacionados com a própria formação do profissional. Outro ponto observado é a falta de representatividade de profissionais negros nas escolas.

“Se o profissional não entende o que é o racismo, não sabe como ele se manifesta nas suas minúcias e sutilezas do cotidiano, quando a instituição não tem bonecas negras, não traz nas interações e brincadeiras a perspectiva da cultura afro-brasileira, quando essas crianças não são representadas nos vários espaços, quando a literatura é estadunidense ou eurocêntrica, tudo isso são manifestações de racismo na educação infantil”, acrescenta.

Os efeitos no desenvolvimento das crianças negras
O documento “Racismo, Educação Infantil e Desenvolvimento na Primeira Infância”, publicado em 2021 pelo Núcleo Ciência pela Infância (NCPI), descreve os efeitos do racismo no desenvolvimento infantil, que aparece na rejeição da própria imagem e impacto na autoestima, construção de uma identidade racial desvalorizada, problemas de socialização e inibição de comportamento, estresse tóxico, ansiedade, dificuldade de confiar em si, entre outras implicações.

“O racismo é uma das variáveis que compõem as chamadas experiências adversas na infância. A experiência de ser criança negra no Brasil ocorre na adversidade do racismo brasileiro e essas crianças podem enfrentar maior exposição ao estresse tóxico por traumas e a situações de pobreza devido ao racismo”, destaca trecho do documento.

Ainda de acordo com o estudo, o maior perigo em ignorar a raça na constituição das relações sociais e nas propostas pedagógicas da educação infantil, é o de equiparar negros e brancos, como se eles tivessem a mesma oportunidades.

Práticas pedagógicas eficazes na promoção de uma educação antirracista
Segundo a professora do Instituto de Letras e Humanidades, da Universidade Internacional da Integração Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Míghian Danae Ferreira Nunes, quando se entende que a educação infantil tem como fundamento a interação e o brincar, se faz necessário desenvolver as práticas pedagógicas que levem em consideração essas dimensões.

A exemplo de práticas que “busquem favorecer a participação de todas as crianças, com escuta e consideração daquilo que elas trazem como importante para elas no espaço da instituição”. A educadora ressalta que não há fórmulas prontas, mas a educação das relações étnico-raciais orienta que os professores observem os contextos presentes na vida das crianças.

Para criar um ambiente seguro e acolhedor para todas as crianças, livre do racismo, Míghian destaca a participação de toda a comunidade escolar, que deve receber formação adequada para compreender quais materiais e imagens podem ser utilizados para valorizar as crianças que pertencem àquele lugar.

“É importante estar atento/a às formas de comunicação das crianças entre elas e também estar atento/a em, enquanto adultos/as, não reforçarmos papeis generificados e binários a todo o tempo na escola, para além dos estereótipos racistas que muitas vezes estão presentes em livros didáticos, desenhos animados e brinquedos”, defende.

De acordo com a professora, as famílias também precisam de formação em educação das relações étnico-raciais para que seja possível construir uma educação antirracista.

“Sem isso, fica difícil que elas possam colaborar com esse projeto, pois a sociedade racista da qual as famílias também fazem parte não colabora para que elas aprendam sobre como agir. Famílias brancas e negras são capturadas pelo racismo de diferentes formas e sem letramento racial acho um tanto quanto difícil”, avalia.

Ela ainda menciona a importância da formação continuada, mas ressalta que apenas isso não é o suficiente para proporcionar uma educação livre do racismo. “Entendemos ainda que uma formação inicial que inclua a discussão desde o começo e uma legislação que respeite as bases estabelecidas na educação das relações étnico-raciais são outros pontos muito importantes para conseguirmos efetivar uma educação antirracista”.

A contribuição da Lei do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira
A Lei nº 10.639, de janeiro de 2003, tornou obrigatório o ensino sobre a História e Cultura Afro-brasileira nos níveis fundamental e médio. Míghian avalia que hoje se fala mais sobre racismo e educação infantil do que no período da promulgação da norma.

Para ela, “quanto mais cedo nos ocupamos de perceber, a partir das ferramentas que a pedagogia e a educação nos dão, quais os problemas que afetam a sociedade brasileira e como eles chegam às crianças, mais cedo conseguimos incidir para a construção de uma infância plena e sem racismo, o que impacta diretamente a forma como crescemos enquanto sociedade”.

Ela enfatiza que o parecer 2/2007, sobre a lei, do Ministério da Educação, mostra a preocupação dos profissionais da educação na inclusão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

“Nosso desafio continua sendo incluir cada vez mais a educação das relações étnico-raciais na educação infantil com mais ênfase, não apenas a partir da literatura, mas também das demais linguagens artísticas, das brincadeiras, da alimentação e do cuidado, por exemplo, de modo que a educação de qualidade sem racismo alcance todas as crianças que frequentam as instituições de educação infantil brasileiras”, reflete.

Em relação às medidas a serem tomadas para a efetivação da lei, a especialista pontua a formação inicial e continuada de educadoras da infância, a pressão social pelo fim do racismo, os movimentos sociais e a divulgação de boas práticas na educação e a premiação de escolas que trabalham com a temática, podem colaborar para a educação das relações étnico-raciais, que segundo ela, o parecer da norma já defende que é muito mais do que falar apenas de história e cultura afro-brasileira.

“Não há como um artigo de uma lei dar conta de resolver todos os problemas que uma educação colonial e jesuítica deixou marcada, ele é apenas um dos muitos caminhos que nós, enquanto sociedade, podemos mirar para promover transformação na educação de modo a alcançar maior equidade racial em nossa sociedade”, alerta.

Fonte: Andi Comunicação e Direitos