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Como saber se a criança precisa de terapia?

Novos estudos apontam que a preocupação com a saúde mental na infância e a procura por atendimento psicológico estão crescendo. Conheça algumas situações em que o acompanhamento de um profissional da área é um aliado e tanto para o desenvolvimento infantil

Se a dúvida sobre o seu filho fazer ou não terapia já passou pela sua cabeça, saiba que você não está só. Segundo um levantamento recente do Pew Research Center, instituto especializado em pesquisas de opinião pública dos Estados Unidos, 40% dos pais norte-americanos se dizem “extremamente” ou “muito” preocupados com a possibilidade de seus filhos apresentarem sintomas como ansiedade e depressão em algum momento. Por aqui, embora não haja dados semelhantes, a apreensão com a saúde mental das crianças se intensificou durante a pandemia da covid-19 e certamente cresceu ainda mais após o ataque à Escola Estadual Thomazia Montoro, na capital paulista, em março de 2023.

Este cenário pode ser medido pelo crescimento da procura por atendimento nos consultórios. Uma pesquisa feita pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), em parceria com a Universidade Católica de Santos, ambas em São Paulo, e a Associação Brasileira de Psicologia da Saúde, que entrevistou cerca de 250 psicólogos, de 2020 a 2023, aponta que houve um aumento da demanda – de 30% a 80% – por especialistas que atendem todas as faixas etárias. “Ainda vivemos as consequências de dois anos de distanciamento social e de tudo o que envolveu esse afastamento, como doença, morte, medo... Para as crianças, o impacto foi maior, dependendo da idade e das circunstâncias em que se deu a quarentena”, diz Miria Benincasa, professora de Psicologia da Saúde na UMESP, coordenadora da pesquisa.

Mas as vantagens da terapia na infância vão além do tratamento das “sequelas” da pandemia, claro. A seguir, ajudamos você a colocar uma lente de aumento em sinais que mostram que o seu filho pode se beneficiar desse tipo de abordagem, as linhas terapêuticas mais comuns e, principalmente, que não há nada de errado em precisar de ajuda.

Corpo e mente
O apoio de um profissional da área da saúde mental infantil, sejam psicólogos, psicopedagogos ou psiquiatras, via de regra costuma ser associado ao tratamento de problemas mais graves – que são raros, por sorte. É importante ressaltar, no entanto, que a terapia também é uma aliada para a criança enfrentar situações corriqueiras, da chegada de um irmão à mudança de escola, assim como dificuldades de socialização ou a separação dos pais. “Aquela visão restrita, de que para fazer terapia era necessário um diagnóstico, está mudando. Hoje em dia, as famílias estão buscando esse suporte extra para lidar com desafios e conflitos próprios da infância, que fazem parte do crescer e amadurecer, para os quais nem sempre se sentem preparadas”, afirma a neurologista pediátrica Renata Kieling, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Para responder ao questionamento se a criança precisa de terapia, os especialistas consultados pela CRESCER apontam que um bom parâmetro é o nível de sofrimento do seu filho, independentemente da situação. Nem toda criança que mudou de escola vai precisar de apoio psicológico, assim como nem todo divórcio culmina com o pequeno no divã do analista. Porém, se ele está sofrendo a ponto disso afetar suas atividades e relacionamentos, em casa e na escola, talvez seja uma boa hora para pensar nisso.

Os pequenos, especialmente os que ainda não falam, também demonstram que algo não vai bem por meio de dificuldade para comer e dormir ou de choro e irritabilidade em excesso. “Assim como nos adultos, não dá para separar o corpo da mente nas crianças. Por isso, o sofrimento pode repercutir no funcionamento do organismo”, explica a psicanalista e doutora em psicologia Denise de Sousa Feliciano, presidente do Núcleo de Estudos de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).

No caso de Isabela, 7, não foi tão fácil assim de identificar. Ela sempre foi uma menina carinhosa, engraçada e precoce para a idade, segundo a mãe, a empresária Luana dos Santos Martins, 41. Aos 6 anos, na última etapa da educação infantil, começou a apresentar alguns problemas de comportamento na escola. “Vinha recadinho na agenda todo dia, ela sempre estava metida em alguma ‘treta’. Nem sempre como a causadora, às vezes como a influenciadora, porque costuma ser a líder da turma”, recorda-se Luana, que também é mãe de Pedro, 3. Por recomendação da própria escola, Isabela começou a fazer psicoterapia.

“As pessoas me diziam ‘ela não precisa disso, é bom que saiba se defender’. Mas eu percebia que a impaciência e a falta de empatia dela com os colegas, até por ter o QI mais alto do que o esperado para a idade, conforme um teste que a especialista fez, estava gerando um estresse desnecessário nela”, conta Luana. Depois de duas tentativas frustradas com profissionais que não agradaram nem à mãe, nem à menina, encontraram uma psicóloga com a qual se identificaram. “É impressionante o quanto a Isabela evoluiu em três meses. A tática foi trabalhar as emoções por meio de jogos, brincadeiras, filmes, no consultório e em casa. A previsão é que receba alta daqui a um mês”, comemora a mãe.

Fique atento aos sinais
Embora nem sempre seja fácil identificar quadros relacionados à saúde mental das crianças, existem alguns sinais que podem demonstrar que algo não está bem. Para ajudar, Cristina Borsari, psicóloga do Sabará Hospital Infantil (SP), destacou os principais sintomas que os pais devem prestar atenção. Confira:

  • Irritabilidade
  • Choro excessivo
  • Isolamento
  • Agressividade
  • Dificuldade para se concentrar
  • Baixo rendimento escolar
  • Demora para andar ou falar, entre outros atrasos no desenvolvimento

Fora da curva
Claro que o especialista em saúde mental também auxilia em situações para além das corriqueiras, como transtornos – transtorno do déficit de atenção (TDAH), transtorno do espectro autista (TEA), transtorno opositivo desafiador (TOD) etc. –, traumas e atrasos no desenvolvimento. “O crescimento emocional ocorre de maneira crescente, assim como o físico”, afirma Denise, da SPSP. Tudo o que sair “fora da curva”, ou seja, do que se espera para a faixa etária, merece atenção. Por entenderem a fundo as fases e os marcos do desenvolvimento infantil, a escola e o pediatra que acompanham a criança são os maiores aliados da família aqui. E a intervenção pode começar antes do que imaginam os pais.

Uma revisão de estudos feita em 2022 pela Associação de Psicoterapeutas de Crianças do Reino Unido observou que intervenções terapêuticas com foco no relacionamento entre filhos e pais, nos primeiros meses e anos de vida das crianças, ajudam a reduzir dificuldades emocionais tanto nos adultos quanto nas crianças. “Em casos de prematuridade e suspeita de TEA, por exemplo, a interação com esse profissional, especialmente para estimular áreas menos desenvolvidas, já está consolidada pela ciência. Mas qualquer bebê ou criança que se encontre vulnerável em alguma das áreas atendidas pela psicologia, seja cognitiva, comportamental, afetiva e social, poderá se beneficiar dessa relação”, diz Miria Benincasa, da UMESP, cuja área de atuação como pesquisadora também inclui gestantes e bebês.

Tanto para o diagnóstico quanto para o tratamento do TDAH, Felipe, 8, contou com uma equipe multidisciplinar, que incluiu psiquiatra, psicóloga e psicopedagoga. “Notávamos algumas questões comportamentais há alguns anos, mas o atendimento em si, para melhorar as habilidades sociais, a escrita e a leitura, começou há alguns meses”, diz a empresária Anna Carolina Leibel Ferreira, 47, mãe do menino. Junto com as terapias, Felipe também faz uso de um medicamento próprio para TDAH, prescrito pelo médico.

O psiquiatra Fernando Asbahr, coordenador do Programa de Ansiedade da Infância e da Adolescência, do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), explica que muitos pais têm resistência ao uso de remédios que atuam no sistema nervoso, como psicotrópicos e ansiolíticos, e com razão. “Mas vale ressaltar que eles podem auxiliar o tratamento psicoterápico em alguns casos, como no TDAH (que envolve questões neurobiológicas) e em situações em que a ansiedade, a depressão e alguns tipos de fobias estão impedindo a criança de realizar atividades normais, como ir à escola”, exemplifica. “Mesmo assim, a indicação é rara, e quem tem de fazer essa triagem é o psiquiatra”, completa o especialista.

Anna Carolina está feliz com os resultados positivos do tratamento de Felipe e destaca a importância da parceria família, profissional e escola. “A criança não faz terapia sozinha, é um trabalho em conjunto”, resume.

Cuidar de quem cuida
Uma peça fundamental para o sucesso do tratamento é a família, como garante a psicóloga Cristina Borsari. “No consultório, mapeamos e acessamos os sentimentos, mas o tratamento não funciona sem os pais no dia a dia. Eles são coparticipantes desta jornada”, diz. Na prática, funciona assim: a primeira consulta costuma ser com os pais, a fim de o profissional compreender o motivo que os levou até ali e entender a dinâmica da casa. “A partir dessa entrevista, identificamos também se algum dos pais está adoecido psiquicamente falando. Afinal, para cuidar do filho, ele precisa se cuidar também”, pontua Cristina.

A família recebe, então, recomendações sobre a sua conduta e a maneira como se comunica com o filho, com o intuito de aprimorar essa relação, além de ser orientada a olhar para os próprios sentimentos, se necessário. Na sequência, as sessões acontecem com o paciente somente. No entanto, os pais podem participar de algumas delas ao longo do tratamento. A duração vai depender da queixa e da evolução da criança: para começar, normalmente indica-se um mínimo de 12 sessões.

O tratamento de Murilo, 10, que terminou recentemente, durou dois anos e meio. “Aos 7, ele começou a apresentar alguns tiques nervosos. A pediatra, então, sugeriu um acompanhamento psicológico para controlar a ansiedade”, recorda-se a mãe, a diretora de RH Mariana Mancini, 44, que também é mãe de Isabela, 6. Os pais participaram de todas as etapas do processo e, à medida que os tiques foram diminuindo, decidiram em conjunto com a terapeuta que estava na hora de fazer o “desmame”, aos poucos.

“As sessões aconteciam semanalmente, depois a cada 15 dias e, por fim, uma vez ao mês. Ele gostava muito, mas acabou aceitando”, diz Mariana. Para a mãe, um dos grandes ganhos do processo foi o hábito que Murilo adquiriu de contar aos pais tudo o que acontece ao seu redor. “Ele está superbem. Mas, se precisar, pode voltar um dia. Há coisas que nós, pais, não conseguimos endereçar sozinhos”, conclui.

A culpa é de quem?
Ainda há um estigma grande quando o assunto é terapia. A associação direta com doenças mentais graves diminuiu, é verdade. Mas a culpa que muitos pais sentem, não. “Eles tendem a achar que fizeram algo de errado. Evidentemente, não podemos ignorar a influência da família na criança. No entanto, ninguém (criança ou adulto) está livre de sofrer por alguma questão mental”, afirma o psiquiatra e psicanalista Roberto Santoro, coordenador do grupo de trabalho sobre saúde mental da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e vice-presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ).

Para a psicopedagoga Marisa Castanho, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia (ABPp), pode existir também uma certa dificuldade dos pais para compreender o que está se passando com o filho. “Como uma ideia inadequada de que a criança seja assim mesmo ou que tenha saído a algum outro membro da família que apresenta o mesmo problema”, diz a especialista. Claro que não se trata de colocar rótulos ou generalizar – classificando qualquer mudança ou inadequação do comportamento como um transtorno, por exemplo. E, sim, de compreender que somos frutos tanto do ambiente quanto da genética.

Neste cenário, a pandemia da covid-19 é um exemplo atual da nossa falta de controle sobre o meio e do quanto isso pode afetar a saúde mental. Mas existem outros gatilhos emocionais mais fáceis de dominar, pelo menos na teoria, como o uso excessivo de telas. “A vida que se oferece no ambiente virtual é fácil, com recompensas imediatas e pouca interação. Por essa razão, as evidências mostram que um dos maiores prejuízos relacionados às telas está ligado à incapacidade de a criança aprender a regular as emoções fora delas”, alerta a neurologista Renata Kieling, da UFRGS. No mundo real, afinal, existem obstáculos, demandas, frustrações.

“Na melhor das hipóteses, se não receber ajuda, a criança pode se reequilibrar com recursos próprios com o tempo. Na pior, os problemas que ela está enfrentando vão afetar diferentes esferas de sua vida e desencadear quadros mais graves”, diz Santoro, da SBP. Isso porque, como sugerem algumas evidências citadas em um documento científico da Sociedade Brasileira de Pediatria, de 2020, quando a criança fica exposta cronicamente aos hormônios do estresse, há prejuízo na formação da arquitetura cerebral nas áreas relacionadas às funções executivas e à resiliência.

Fazer terapia não é sobre acabar com o sofrimento de vez, de acordo com Santoro, e sim encurtá-lo. Algo parecido com o que nos ensina Guimarães Rosa quando diz: “Refresca teu coração. Sofre, sofre, depressa, que é para as alegrias novas poderem vir…".

Saúde mental para todos
Políticas de saúde mental para crianças e adolescentes só entraram na pauta nacional no início do século 21. Até então, elas eram delegadas à agenda dos setores da assistência social e educação, com propostas mais reparadoras e disciplinares do que propriamente clínicas ou psicossociais. Já no modelo atual, a rede de cuidados foi ampliada, baseando-se principalmente nos Centros de Atenção Psicossocial Infantis e Juvenis (CAPSi), ligados ao Sistema Único de Saúde (SUS). Assim como em ações em conjunto com outros setores, como educação, assistência social e Justiça. No entanto, a oferta, tanto de profissionais quanto de serviços e ambulatórios, ainda é irregular. Em algumas regiões está avançando, enquanto em outras, não.

Na rede particular, houve uma mudança significativa no ano passado, com o fim da limitação do número de consultas e sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos e terapeutas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula os planos de saúde. Agora, os convênios são obrigados a cobrir um número ilimitado de consultas e sessões, desde que com a prescrição do médico que assiste o paciente.

Fontes: Cristina Ventura Couto, do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)

O papel da escola
Dois em cada cinco estudantes do Brasil precisam de atendimento psicológico, além de apresentar dificuldades para controlar emoções como raiva e frustração. É o resultado de uma pesquisa recente feita pelo Datafolha a pedido da Fundação Lemann, do Itaú Social e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O estudo ouviu cerca de 1,3 mil responsáveis e 1,8 mil alunos (entre 6 e 18 anos) de escolas públicas.

Por lei, desde 2019, os sistemas educacionais são obrigados a incluir equipes multiprofissionais com psicólogos e assistentes sociais nas escolas públicas de educação básica. Entretanto, de acordo com Marisa Castanho, presidente da ABPp, a atuação das instituições não pode se limitar a intervenções e encaminhamentos. “O trabalho dentro das escolas é eminentemente preventivo, de investimento em processos facilitadores de ensinar e aprender para todos os envolvidos”, diz.

Fonte: Revista Crescer